Algumas vezes, quando vou escrever, já tenho a ideia e a
maior parte do caminho definidos. Parece que falta apenas sentar e escrever. O
texto sai do mundo das ideias e alcança minhas mãos. E ele, o texto, vem como
um emaranhado entre meus dedos. Basta apenas o trabalho braçal de desmaranhar
as ideias, cuidadosamente enrolar um novelo de palavras e tricotar a peça.
Acontece que nem sempre encontro facilmente a ponta desse
emaranhado. Isso resultada em uma demora inesperada, um engasgo literário não
desejado, um travamento quase desesperador. Caso não localize logo essa ponta,
o futuro texto fica ali esperando um fórceps ou uma cesariana. Se nem isso
acontece, resta-me ainda duas opções: Ou aguardar um nascimento temporão (que
não terá o mesmo gosto ou efeito); ou cometer um aborto.
Um desses textos que está na fila do temporão ou do aborto é
sobre a morte do Belchior. As ideias, emaranhadas em minhas mãos, começam a
envelhecer virgens, talvez eu já perceba nelas alguns sinais de
infertilidade...
O mesmo ocorria com este texto que está nascendo!
Desde que terminei a leitura do AUTOIMPERIALISMO, de
Benjamin Moser, tenho a necessidade de tricotar esta peça. Faltava-me a ponta
do novelo.
Já andava angustiado, sentia-me um inútil...
Foi nas páginas de um outro livro que encontrei a tal ponta.
TEMPOS VIVIDOS, SONHADOS E PERDIDOS, do Tostão. Mais precisamente no último
parágrafo do primeiro capítulo:
“Alguns pensadores relacionam o estilo descontraído e
irreverente e a improvisação do futebol brasileiro com a brincadeira e a falta
de compromisso – da mesma forma como alguns escritores, como Machado de Assis,
definiram o homem brasileiro. Esses e tantos outros motivos foram determinantes
para a criação do estilo brasileiro de jogar, único, que se perdeu progressivamente
ao longo do tempo. Hoje, estamos sem identidade, sem saber onde estamos nem
para onde vamos.”
Não é isso, mas também sobre isso que Benjamin Moser trata
em seu livro. Os três ensaios que ele nos apresenta são:
- Cemitério da esperança Brasília aos 50;
- A pornografia dos Bandeirantes;
- Autoimperialismo.
Os textos se relacionam e se completam. O olhar estrangeiro
sobre nós serve como as críticas que os
amigos nos fazem sobre aquela camisa ou
aquele comportamento. Somos sempre ocupados demais conosco mesmo para podermos
nos perceber por inteiro? Geralmente sim. Temos sempre a necessidade de
amizades sinceras ou até das consultas com psicólogos para que possamos nos
entender de uma maneira mais ampla. Precisamos de alguém sem envolvimento
comente nossas relações e nos dê uma opinião neutra e sincera, sem medo de
causar mágoas ou desconforto. Aprender a ouvir é imprescindível!
E o que ouvi de Benjamin Moser em Autoimperialismo? (Nas
linhas seguintes não traduzo o que o autor disse, traduzo o meu pensamento após
a leitura do livro).
Ouvi que o Brasil não ama os brasileiros. O Brasil tenta
passar a imagem de uma nação que não comtempla os brasileiros. A construção de
Brasília foi uma forma de isolar o país de seu povo. Faz uns poucos meses que
trabalhadores de todas as regiões brasileiras tentaram invadir o congresso nacional
por conta mal fadada reforma trabalhista. Ajudaram a malograr o custo para se
chegar em Brasília e a estrutura da cidade. A cidade do avião e do automóvel
não aceita quem não tem colírio.
Antes e depois de Brasília, o Brasil continua afastando os
brasileiros para se imaginar como um país.
“A localização dessa vila era o morro da Favela, que legou
seu nome a uma instituição que – muito mais do que o Theatro Municipal, o Museu
Nacional de Belas Artes ou a Biblioteca Nacional – definiria o Brasil moderno.
A favela atrás do Theatro Municipal, a favela criada pelo Theatro Municipal – é
quase ‘simbólico’ demais para ser verdade e, embora o Theatro Municipal e os
bulevares parisienses não sejam a causa da pobreza brasileira, o homem arrasado
com sua casa é um lembrete de que a miséria do país nunca foi inteiramente
acidental”. (Autoimperialismo, Benjamin Moser, pg. 31)
Foi assim que surgiu a primeira favela do Rio, para dar
espaço ao moderno, ao futuro. O mesmo método foi utilizado para que fossem
montadas as estruturas paras as caríssimas Olimpíadas de 2016.
Sempre foi preciso esconder os brasileiros. Lembram da vinda
do João Paulo II, esconderam as misérias e os miseráveis das vistas do Papa.
Enquanto isso há um Cristo que olha “tão longe e além, com
os braços sempre abertos, mas sem proteger ninguém” (Cazuza – Um trem para as
estrelas).
O Brasil quando cresce se esquece das pessoas e da língua.
Expressões estrangeiras dominam e encobrem nossa língua e nosso entendimento.
Há em algumas estações do metrô de São Paulo um quase elevador, nada automático,
para servir idosos ou quem tem dificuldade em subir escadas. Para movimentá-los
é necessário que se segure uma alavanca para cima ou para baixo. Nas
explicações da forma de utilizar o equipamento você não encontrará a palavra “alavanca”,
mas sim “joystick”. Nem todos os brasileiros sabem o que é um joystick, mas
alavanca a grande maioria sabe o que é. Para quem é feito este país?
Prédios e mais prédios são construídos sem que existam as
condições urbanas necessárias. Uma mesma rede de esgoto, implantada nos anos 60
ou 70 tem que suportar a rápida construção de prédios. Pessoas mudam para novos
apartamentos sem a preocupação se a região possui escola suficiente para tantos
filhos, sem se importar se as ruas são estreitas para tantos automóveis, sem
acreditar que perderá a paisagem de suas sacadas para futuros empreendimentos
imobiliários que serão construídos em frente ao seu prédio. Quem vai morar nos
prédios apertados entre si? Milionários? Políticos? Grandes comunicadores? Para
quem é feito este país?
Quando eu morava na Penha sentia-me angustiado por ser cada
vez mais difícil observar o Pico do Jaraguá. Hoje, na Ilha de Caras, isso
também está acontecendo. Em Barueri prédios surgem a todo instante e em todo
lugar. A minha possibilidade de visão do Pico do Jaraguá ou de qualquer outra
paisagem distante é cada vez menor... Os braços desestruturados da megalópole
estendem-se cada vez mais longe, encobrindo a paisagem, violentando a vida
humana.
Evolução nem sempre significa melhora. Evolução significa
adaptação. Adaptar-se não significa ser/estar vivendo em melhores condições.
Adaptar-se significa sobreviver. Sobreviver é menos que viver.
Já cantava Belchior “quanto mais eu multiplico, diminui o
meu amor”. Em outra música, o poeta
cearense nos diz: “e viva a vida e seus instintos no poder da flor”.
O livro Autoimperialismo, de Benjamin Moser, deve ser lido
não para que você concorde ou discorde dele, mas para que possamos pensar nas
questões do Brasil e dos Brasileiros (em todas as embalagens que se apresentem).
Antes que seja tarde demais:
O JARAGUÁ É GUARANI!