terça-feira, 10 de janeiro de 2017

31 ANOS SEM LER - por Hugo Brandão

Estávamos no ALI PUB, Barueri. Era uma apresentação do Grupo Choro Marginal.

Então o Hugo me disse que "aprendeu a ler". Quase um Engenheiro formado, imaginei que isso fazia muito tempo. Mas ele me disse que não...


31 ANOS SEM LER


"Passei 31 anos da minha vida sem ler. E agora, aos 33 anos de idade, descubro os prazeres e desprazeres da leitura.
Bom, acho que é melhor eu me apresentar! Meu nome é Hugo, tenho 33 anos de idade e sou uma “pessoa castanha”. Um jovem medíocre, que na escola apenas se destacou na arte de mentir e aprontar. Tive uma infância muito solitária, talvez isso tenha forjado meu jeito cada vez mais ermitão e antissocial. Também sou mestre em criar bloqueios. Quando acho uma tarefa difícil demais ou imprópria para as minhas habilidades intelectuais, empaco como mula prenha ao se deparar com rio profundo e de vultosa correnteza.
O meu maior bloqueio, depois do mais vexaminoso (que era fazer necessidades nas calças mesmo com uma idade em que crianças “normais” não mais o faziam), era escrever todos os dias no cabeçalho, que antecedia a tarefa do dia no caderno da escola, “brazil”. Nossa como isso deixava minha mãe irritada! Professora de línguas (Português/Inglês), lembro-me perfeitamente como dizia em tom alto, próprio dos professores quando enfrentam resistência aos seus ensinamentos:
“Hugo! “Brasil” é nome de país, se inicia com letra maiúscula e não tem nada de “z”, é com “s”.
Bom! Mas mesmo sem saber ler, escrever, calcular e nunca ter entrado em uma aula de física ou química, consegui aos solavancos, por inércia, concluir o ensino fundamental, o antigo colegial técnico profissionalizante. E ainda entrei na faculdade de engenharia civil, onde me encontro no último ano. Acho que para alguém que era covarde ao ponto de sujar as calças com medo de ir ao banheiro, tive muita coragem de enfrentar a vida escolar, profissionalizante e acadêmica sem saber ler e escrever.
A definição comum da palavra alfabetizado é: “o que ou aquele que aprendeu a ler e escrever”. Agora vamos pensar! Saber ler pode ser interpretar símbolos e assim decifrar um código ou mensagem representadas. Esta, na minha opinião, é a melhor das definições, porém intrinsecamente  não é a definição comumente usada. Se saber ler é interpretar símbolos afim de decifrar uma mensagem e sabemos pronunciar a palavra “Esquálido”, mas não a interpretamos, podemos chegar à conclusão de que ler é mais do que o conhecimento da fonética.  Contudo, a principal função de ler não é a fonética e sim a mensagem que pode ser decifrada sem o conhecimento da fonética.  É possível uma criança surda sinalizada aprender a ler.     
A pré-história é, por conjuntura dos historiadores da arte, dividida em duas épocas: a Paleolítica e Neolítica (Pedra Velha / Pedra Nova). Cada uma com suas particularidades, e a principal característica que nos distancia do homem pré histórico é a descoberta da escrita. Este foi o advento que tirou a humanidade da época da pedra. Logo podemos classificar alguém que está na modernidade, mas não sabe ler, como “Homem Anacrônico”.
Como mestre em criar bloqueios, durante uma boa parte da minha vida, achava, e confesso que ainda não tenho a plena certeza de ser o contrário, que o hábito de ler não seria de todo benigno, pois conduz a criatividade e canaliza o livre pensamento. Pouco antes de completar trinta e um anos de idade resolvi começar um experimento com a leitura. Consultei o Google, pesquisei  “livro mais foda do mundo”.  Achei uma lista tipo “top 10” e o número um do ranking era “Guerra e Paz” de Tolstói. Resolvi começar por ele, numa versão completa com 1500 páginas divididas em dois volumes. Insisti bem nessa ideia. Fui até quase o final do primeiro volume, mesmo sem entender quase nada, devido a grande quantidade de personagens e ao autor hora referir se aos personagens pelo nome, outra pelo sobrenome, titulo ou grau de parentesco com outro personagem. Até que, no final do primeiro volume, desisti da ler,  pois já fazia pouquíssimo sentido.
Apesar de ter desistido de Leon Tolstói, ainda não tinha desistido da meta de ler. Parti em nova empreitada então. Comprei quase a coleção completa, da versão “pocket”, de “Nietzsche”. Li, não lembro a ordem, mas li “O Nascimento da Tragédia”, “A Gaia Ciência”, “O Caso Wagner” e “David Strauss, Sectário e Escritor”.
Com a leitura dos livros de “Nietzsche”, depois de viciar na aventura que era ler em um português rebuscado e cheio de descobertas dentro da minha própria língua, percebi que o desafio de ler vai além de entender a “mensagem global”. Agora também havia o desafio de entender as novas palavras que eu não tinha o conhecimento do seu significado.
Depois das minhas aventuras com os volumes do alemão, decidi voltar ao Tolstói. Foi quando achei um volume em inglês e de aspecto físico muito bonito, de “Anna Karenina”(Ed. CRW Publishing). O desafio foi maior ainda com “Anna Karenina”.  Por exemplo, nas primeiras páginas encontrei o adjetivo “lenient”, que para mim era desconhecido. Achei a seguinte tradução: “lenient = Indulgente”. Fiquei na mesma! Então tive que, além de operar um dicionário de versão em outra língua,  operar um de significação.
Após “Anna Karenina” me senti totalmente preparado a voltar para “Guerra e Paz”. Hoje (30/12/2016) já li 80% da obra completa. Vejo sentido em cada frase e entendo a obra como um todo e, graças ao autor, consegui associar conceitos de cálculo infinitesimal com causa e efeito, relevantes ao comportamento do homem em sociedade; conhecer o “iluminismo” e ler “O que é o iluminismo?” (8 páginas) de Immanuel Kant; e ainda tantas outras experiências.

Ler não é conhecer o alfabeto. Mas sim exercício de constante pesquisa. Se um indivíduo conhece o Alfabeto Cirílico não quer dizer que ele entenda Russo. Ou seja, há uma enorme diferença entre ler e “ler”. "     



6 comentários:

  1. Muito bom! Caso não se consiga mais cedo, não há razão para não se conseguir mais tarde!

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  2. Muito bom! Caso não se consiga mais cedo, não há razão para não se conseguir mais tarde!

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  3. Olá, muito interessante o seu post.
    Como estudante de pedagogia, essa questão da importância de saber ler e de saber interpretar o que se lê é sempre debatida. Muitas vezes, na escola, enquanto alunos, não somos realmente apresentados aos significados e aos sentidos do que estamos aprendendo.

    Você foi corajoso de começar a ler logo por Tolstói, dele eu ainda só li alguns contos.

    petalasdeliberdade.blogspot.com
    desafioleiamaisbrasil.blogspot.com

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    1. O Hugo é, entre outras grandes qualidades, uma pessoa corajosa e determinada. Ler não é fácil. Fácil é unir letras e formas palavras, frases. Entender o escrito requer vontade.
      Pena que estejamos passando por uma época de tão pouca vontade...
      Visitarei seus blogs!
      Dourovale!

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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